A Voz dos Avós: Migração, Memória e Património Cultural.
A Voz dos Avós: Migração, Memória e Património Cultural. Nunca na história da humanidade as mudanças sociais e culturais foram tão vertiginosas como as que se verificam atualmente. Assistimos, nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento, a avanços tecnológicos sem precedentes, a uma mudança significativa das estruturas familiares e na organização do trabalho, a um aumento na qualidade de vida das pessoas, que vivem mais anos e mais saudáveis e até cada vez mais tarde, e a taxas de nascimento muito baixas, culminando no Envelhecimento populacional e na transformação das relações
intergeracionais familiares.
Os avós de hoje têm, por um lado, a oportunidade de viver a idade infantil, a idade da adolescência e a idade adulta dos seus netos e netas, aumentando a possibilidade de conviver e estabelecer mais relações entre avós‑netos. Por outro lado, assiste‑se à separação entre os membros mais novos e os mais velhos da família, devido a mudanças sociais e culturais, tais como: as famílias serem cada vez mais verticais, com menos elementos e maiores diferenças de idades entre eles; ser cada vez mais raro encontrar famílias em que várias gerações coabitem no mesmo espaço; e cada
vez mais frequente a deslocação das pessoas dos seus locais de origem, sobretudo as gerações mais novas, por motivos de trabalho.
Deste modo, o aumento da esperança de vida, que se apresenta como uma conjuntura favorável às relações intergeracionais familiares ‑ relações que fomentam a transmissão de valores morais, humanitários, educativos, culturais e condição sine qua non para a construção de uma sociedade melhor e mais solidária ‑ está a ser desaproveitado, com efeitos negativos para as famílias, as gerações envolvidas e as sociedades atuais.
Neste contexto, variados organismos e entidades internacionais, como a
Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e a União Europeia (UE), entre outros, têm vindo, nas últimas décadas, a alertar para a necessidade de estudar e estabelecer medidas que possibilitem alcançar um envelhecimento mais ativo e mais saudável (Arnay, 2012, p. 111), assim como desenvolver novas formas de Solidariedade entre as gerações, assentes no apoio mútuo e troca de experiências.
Felizmente, os discursos científicos e sociais sobre o envelhecimento estão a mudar e surgem cada vez mais vozes, tais como as que constituem esta coletânea, que se distanciam do paradigma funcionalista (Cumming & Henry, 1961), o qual tem uma perceção negativa da velhice e apresenta as pessoas idosas, a partir da reforma, como um grupo improdutivo ou não comprometidas com o desenvolvimento da sociedade (Bowling, 2008; Bury, 1996). Pouco a pouco, adquire‑se a consciência de que todos fazemos parte do mesmo tecido social, de que todas as gerações estão interligadas
e de que excluir pessoas (porque não fazem parte do mercado de trabalho, mas que encerram em si um enorme capital social e cultural) é um erro que não faz sentido num mundo cada vez mais envelhecido.
O intento dos dias de hoje é construir uma sociedade para todas as idades que a ONU define como a sociedade que
ajusta as suas estruturas e funcionamentos e políticas e planos às necessidades e capacidades de todos, em que se aproveitam as possibilidades de todos em benefícios de todos. Além disso, uma sociedade para todas as idades permitiria às gerações efetuar inversões recíprocas e partilhar os frutos dessas inversões, guiadas por princípios análogos de reciprocidade e equidade (ONU, 1995, citado por Sánchez & Martínez, 2007, p. 18).
Para avançar com os objetivos de uma sociedade para todas as idades, muito caminho há ainda a percorrer. Numa análise detalhada, Sidorenko e Walker (2004, p. 152) explicam que o conceito de uma sociedade para todas as idades articula‑se em vários temas, entre eles: os direitos humanos; o empowerment das pessoas idosas; o desenvolvimento individual; a igualdade de género; a realização pessoal e o bem‑estar ao longo da vida; a interdependência, a solidariedade e a reciprocidade intergeracional; a atenção médica, o apoio e a proteção social das pessoas idosas; a
situação de envelhecimento das pessoas indígenas e dos imigrantes e a investigação e a experiência científica.
Neste sentido, A Voz dos Avós é uma iniciativa a louvar pelo compromisso e
empenho de profissionais e investigadores de diferentes áreas disciplinares, universidades e países, que participaram no II Congresso Internacional “A Voz dos Avós: Migração, Memória e Património Cultural”, realizado em Lisboa, Fundação ProDignitate, de 26 a 28 de Julho de 2010 e organizado pela Universidade Aberta, com a colaboração da Universidade de Toronto. Os textos que figuram nesta obra demonstram a importância da participação das pessoas idosas para além do mercado de trabalho; evidenciam as tarefas e as funções que desempenham estas pessoas
na nossa sociedade; valorizam o conhecimento, o esforço, as experiências e a responsabilidade dos idosos, entre outros aspetos.
A obra está dividida em quatro partes, iniciando‑se com o tema “A voz dos avós na diversidade dos espaços, tempos e gerações”, ao que se seguem “Educação, relações intergeracionais, memória e transmissão cultural”, “Memória, identidade e património cultural” e, finalmente, “Migração, interculturalidade, envelhecimento e património cultural. Ressalte‑se, no entanto, que a proximidade e a interligação dos temas exigem uma leitura integral do livro por parte dos leitores.
A primeira parte, sob o título A voz dos avós na diversidade dos espaços, tempos e gerações, inicia‑se com o texto de Avelino de Freitas Menezes (pp. 23‑32), sobre os avós na sociedade moderna. Através da experiência das famílias de emigrantes de origem açoriana, este autor apela e documenta a importância dos avós, não só porque substituem e amparam os pais na educação das crianças, mas também porque através do conhecimento que transmitem suscitam nos netos o interesse pelo conhecimento das origens e o gosto pela descoberta das suas raízes. O autor aponta os avós como principais agentes da preservação e da transmissão da cultura
portuguesa no estrangeiro. Assinala também o facto de as Universidades não poderem ficar alheias à problemática do envelhecimento.
No segundo texto da obra, Natália Ramos (pp. 33‑56) destaca, por um lado, a
importância dos avós no apoio emocional, educativo e instrumental dos seus netos e, por outro, distingue o papel destes últimos no cuidado dos avós e na mediação de conflitos na família. A autora clarifica, ainda, a solidariedade familiar intergeracional e as relações intergeracionais, sem esquecer o duplo sentido destas relações nos diversos espaços, tempos e contextos, recorrendo a diferentes pesquisas e à imagem fixa e animada, decorrente de investigação fílmica.
O estudo de Alcinda Costa dos Reis (pp. 57‑67) demonstra que o modelo familiar que privilegia os cuidados às gerações mais velhas, e as interações estabelecidas desde a infância com os avós parece impulsionar, mais tarde, alguns jovens na opção pelo campo profissional da Enfermagem, sensibilizando‑os em particular para a área da gerontologia.
João Paulo Rodrigues (pp. 69‑90) questiona o processo de transmissão de sabe‑es culturais e de cuidados infantis por parte das avós em contexto rural e conclui que as práticas e os saberes destas avós no cuidar das crianças são um misto de práticas tradicionais e de práticas contemporâneas, visto que utilizam os recursos transmitidos de geração em geração e os recursos disponíveis da sociedade atual.
A primeira parte termina com o texto de Cristina Dias (pp. 91‑102), que estuda a convivência em famílias em que avós, pais e netos residem juntos e em famílias que são chefiadas por pessoas idosas. Este estudo salienta que a convivência nestas famílias, por um lado, pode ser fonte de ajuda mútua, troca de experiência, de cuidados, e que, por outro, pode gerar conflitos que resultam dos diferentes modos de educar, de pensar e de distintos valores. Em ambos os casos, alerta a autora, estas avós são submetidas a uma sobrecarga que comporta riscos para a sua saúde mental e física,
o que demonstra a necessidade permanente de apoio e de orientação das mesmas.
A principiar a segunda parte, intitulada Educação, relações intergeracionais, memória e transmissão cultural, encontra‑se o texto de José Arnay Puerta (pp. 105‑120), que alerta para a urgência de a educação superior melhorar os aspetos relacionados com os processos de ensino e aprendizagem, adequando‑os às necessidades específicas das pessoas a que estão destinadas, neste caso as pessoas idosas.
Nesta linha de pensamento, Maria Teresa Medeiros (pp. 121‑136) avalia e reflete sobre a prática desenvolvida nos últimos dez anos pela Universidade dos Açores na vertente formativa de aprendizagem ao longo da vida para alunos seniores. Neste texto, a autora, para além de apresentar o modelo científico/académico desenvolvido, termina a sua exposição apontando os desafios que se colocam atualmente a esta vertente formativa.
Isabel Condessa (pp. 137‑151) analisa as brincadeiras e os jogos de infância dos idosos do arquipélago dos Açores e a transmissão da cultura do brincar através da interação entre avós e netos, distinguindo a sua utilidade na construção do conhecimento da criança, na sua socialização e no seu envolvimento na comunidade.
Apresenta ainda uma série de projetos intergeracionais que utilizaram os jogos e as brincadeiras como base e apoio ao seu desenvolvimento.
A passagem de testemunho das pessoas idosas, como estratégia para o sucesso na prospeção, como na identificação e aplicação de espécimes de plantas aromáticas, medicinais e tradicionais na serra da Lousã, é apresentada por Carmo Lopes (pp. 153‑170), asseverando a geração das avós como fonte segura e experiente do conhecimento etnobotânico.
A fechar a segunda parte, Alzira Serpa Silva (pp. 171‑175) celebra o papel dos avós através de uma síntese de discursos de diferentes pessoas que mencionam a importância dos seus avós nas suas vidas, fazendo igualmente uma reflexão sobre a sua própria experiência neste âmbito.
A terceira parte da obra reúne um conjunto de trabalhos focados na temática Memória, identidade e património cultural.
Yvone Dias Avelino (pp. 179‑191) apresenta uma análise realista de textos e entrevistas de ensaístas e jornalistas dos mais variados ramos de conhecimento, expondo exemplos das relações familiares e demonstrando que a “avosidade” é uma prática que se individualiza conforme a vivência histórica, o caráter e o sentimento de cada um.
O papel fundamental das pessoas idosas na construção e entendimento da cultura das comunidades é destacado por Sérgio Resendes (pp. 193‑207). Este autor serve‑se do testemunho da sua avó como registo da vivência social da freguesia de Água Retorta, na primeira metade do século XX, comunidade desde sempre isolada da ilha de S. Miguel.
Marlúcia Menezes Paiva (pp. 209‑224) pesquisa a memória dos momentos de educação popular no Rio Grande do Norte, Brasil, nos anos de 1958‑1964, estudando em particular o percurso das Escolas Radiofônicas de Natal apoiadas pela igreja e mais tarde integradas no Movimento de Educação de Base (MEB), que modificou o funcionamento destas escolas, com uma orientação didático‑pedagógica que dava enfase à educação de base. Segundo esta autora, esta experiência educacional obteve resultados
bastante positivos na educação das pessoas residentes nas regiões mais carenciadas do Brasil. Porém, como foi alvo de repressão ditatorial com o golpe de Estado de 1964, é referido que hoje resta apenas uma caricatura do que existia.
O último texto da terceira parte é o estudo de Maria Izilda Santos e Matos (pp. 225‑243), sobre a trajetória de vida da portuguesa Maria Prestes Maia, companheira do Perfeito da Cidade de S. Paulo. Este estudo conduz ao entendimento da vida cultural e política desta cidade brasileira nas décadas de 1930 a 1960, mas também ao conhecimento da experiência social e histórica, através das lutas políticas e culturais, de uma imigrante portuguesa.
A quarta e última parte desta coletânea é dedicada à temática Migração, interculturalidade, envelhecimento e património cultural.
Catarina Guimarães, Nuno Nunes e Rita Castanho (pp. 247‑255) refletem sobre as principais dificuldades, obstáculos e experiências no processo de envelhecimento de imigrantes portugueses em idade avançada nos EUA, alertando e fornecendo orientações para a elaboração de políticas sociais e económicas que respondam às necessidades desta população.
As autoras Flávia Schuler e Cristina Dias (pp. 257‑270) estudam as famílias
interculturais, tendo como objetivo geral compreender a adaptação e as repercussões do casamento intercultural nas vidas de mulheres brasileiras casadas com suíços residentes na Suíça. Deste estudo apuraram que todas as mulheres entrevistadas enfrentaram dificuldades devido às diferenças culturais no meio social, no casamento e na educação dos filhos, resultados que estabelecem a necessidade de uma reflexão mais aprofundada sobre a migração e os casamentos interculturais.
A migração e a situação de envelhecimento das pessoas imigrantes é outro dos temas relevantes da presente obra. As autoras Filipa Marques e Liliana Sousa (pp. 271‑283), com o objetivo de traçar perfis de emigração, inquiriram 20 pessoas idosas ex‑emigrantes portugueses, com idade entre os 70 e os 94 anos. Ao encontrarem diferentes obstáculos e facilidades na trajetória de emigração, conforme a zona e a localização do país de acolhimento e as suas vicissitudes, determinaram três perfis de
emigração: África, Europa e América do Sul, perfis que parecem influenciar as trajetórias de emigração, assim como imprimir diferenças na vida destas pessoas idosas.
Os movimentos associativos e culturais das comunidades migrantes é tema de reflexão por parte de Maria da Conceição Ramos (pp. 285‑309). Neste artigo, a autora, por um lado, destaca a importância do associativismo, tanto na manutenção da cultura de origem dos migrantes, quanto na adaptação e envolvimento na cultura de acolhimento. Por outro
lado, evidencia as associações migrantes como eixos de socialização, de reforço de laços culturais, de afirmação identitária, de solidariedade e entreajuda e de mediação e integração.
A fechar a quarta e última parte desta obra, Manuela Malheiro Ferreira (pp. 311‑‑329) expõe algumas ideologias das pessoas imigrantes relativas à sua permanência num determinado país e as consequências que têm na escolaridade dos seus filhos. A autora acentua a importância das escolas promoverem a educação intercultural e aponta a educação patrimonial como estratégia para o desenvolvimento de práticas interculturais.
Os dezanove trabalhos supramencionados contribuem com brilhantismo para a promoção, compreensão e valorização do papel das pessoas idosas, não só na família, mas também na sociedade, função muitas vezes esquecida, mas tacitamente desempenhada.
A visão holística e multidimensional da presente coletânea de trabalhos induz à reflexão sobre a importância do papel das pessoas idosas na nossa sociedade, em diferentes tempos e espaços. Possibilita ao leitor apreender a heterogeneidade das pessoas idosas, a característica que talvez melhor define este grupo geracional, estimula a reflexão crítica sobre os preconceitos e estereótipos negativos em relação a este grupo etário e promove a intergeracionalidade com vários exemplos de práticas, que Natália Ramos define como
atividades intergeracionais que proporcionam um espaço em que as
diferentes gerações, respeitando as diferenças e conhecimentos, criam
um espaço comum de troca mútua de saberes e afetos, de solidarie‑
dades e de diálogo entre os mais velhos e os mais jovens a partir de
conhecimentos e experiências de cada um” (Ramos, 2012, p. 43).
Por todos estes motivos, A Voz dos Avós: Migração, Memória e Património Cultural converte‑se num trabalho de referência para a literatura científica atual na área.
revista portuguesa de pedagogia ANO 47‑2, 2013, 107‑113
Recensões
A Voz dos Avós: Migração, Memória e
Património Cultural
Ramos, N., Marujo, M., & Baptista, A. (Orgs.) (2012). A.
voz dos avós: Migração, memória e património cultural.
Coimbra: Gráfica de Coimbra, Publicações Lda. e Fundação
ProDignitate.
Susana Villas‑Boas 1
1 Universidade de Coimbra ‑ Doutoranda em Ciências da Educação na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e Bolseira de Doutoramento da Fundação para a Ciência
e Tecnologia (FCT). Investigadora do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais, Universidade Aberta de Lisboa (CEMRI‑UAb) ‑ Grupo de Investigação Saúde, Cultura e Desenvolvimento.
Email: suvboas@gmail.com
Referências bibliográficas
Arnay, J. P. (2012). La educación superior de las personas mayores. In N. Ramos, M. Marujo, & A. Baptista (Orgs.), A voz dos avós – Migração, memória e património cultural (pp. 105‑120). Coimbra: Gráfica de Coimbra – Publicações Lda. e Fundação Pro Dignitate.
Bowling, A. (2008). Enhancing later life: How older people perceive active ageing?. Aging & Mental Health, 12(3), 293‑301.
Bury, M. (1996). Envejecimiento, género y teoría sociológica. In S. Arber & J. Ginn (Orgs.), Relación entre género y envejecimiento. Enfoque sociológico (pp.35‑54) . Madrid: Narcea S.A.
Cumming, J., & Henry, W. (1961). Growing old: The process of disengagement. New York: Bassic Books.
Ramos, N. (2012). Avós e netos através da(s) imagens e das culturas. In N. Ramos, M. Marujo, & A. Baptista (Orgs.), A voz dos avós – Migração, memória e património cultural pp. 33‑56). Coimbra: Gráfica de Coimbra – Publicações Lda. e Fundação Pro Dignitate.
Sánchez, M., & Martínez, A. (2007). Una Sociedad para todas las edades. In M. Sánchez (dir.), Programas intergeracionales: Hacia una Sociedad para todas las edades (pp. 16‑36). Barcelona: Fundación “la Caixa”.
Sidorenko, A., & Walker, A. (2004). The Madrid international plan of action on ageing: from conception to implementation. Ageing & Society, 24, 147‑165.