História oral como fonte: Problemas e métodos.
JÚLIA SILVEIRA MATOS*
ADRIANA KIVANSKI DE SENNA**
RESUMO
A fonte oral pode acrescentar uma dimensão viva, trazendo novas perspectivas à historiografia, pois o historiador, muitas vezes, necessita de documentos variados, não apenas os escritos. Vale mostrar aqui a evolução de uma prática importante que compõe parte da historiografia contemporânea. Assim, o objetivo deste trabalho é esclarecer algumas dúvidas acerca do uso da oralidade como fonte e trazer a visão e as vantagens descritas por alguns historiadores.
PALAVRAS-CHAVE: História oral, métodos, fontes
RESUMÉ
Les sources orales peuvent ajouter une dimension vivante, apportant de nouvelles perspectives à l’historiographie, comme les historiens exige souvent des documents divers, pas seulement l’écrit. Il vaut montrer ici l’évolution d’une pratique importante qui fait partie de l’historiographie contemporaine. Ainsi, l’objectif est de clarifier certains doutes quant à l’utilisation de l’oralité en tant que source et apporter la vision et les avantages décrits par certains historiens.
MOTS-CLÊS: Histoire orale, méthodes, sources
1. INTRODUÇÃO
A sociedade moderna vive em meio à tecnologia, em plena era da informação difundida pelo rádio, televisão, telefone e Internet, nos quais a oralidade se destaca nesse processo difusor da informação. O objetivo deste trabalho é esclarecer algumas dúvidas acerca do uso da oralidade como fonte e trazer a visão e as vantagens descritas por alguns historiadores. Percebe-se logo a importância da história oral neste trecho da obra de Paul Thompson:
Professora do ICHI–FURG; doutora em História pela PUCRS. E-mail: jul_matos@hotmail.com
** Professora do ICHI–FURG; doutora em História pela PUCRS. E-mail: adrianasenna@vetorial.net
[…] a história oral pode dar grande contribuição para o resgate da memória nacional, mostrando-se um método bastante promissor para a realização de pesquisa em diferentes áreas. É preciso preservar a memória física e espacial, como também descobrir e valorizar a memória do homem. A memória de um pode ser a memória de muitos, possibilitando a evidência dos fatos coletivos (THOMPSON, 1992: 17).
A fonte oral pode acrescentar uma dimensão viva, trazendo novas perspectivas à historiografia, pois o historiador, muitas vezes, necessita de documentos variados, não apenas os escritos. Vale mostrar aqui a evolução de uma prática importante que compõe parte da historiografia contemporânea. De acordo com Alberti,
[…] a história oral apenas pode ser empregada em pesquisas sobre temas contemporâneos, ocorridos em um passado não muito remoto, isto é, que a memória dos seres humanos alcance, para que se possa entrevistar pessoas que dele participaram, seja como atores, seja como testemunhas. É claro que, com o passar do tempo, as entrevistas assim produzidas poderão servir de fontes de consulta para pesquisas sobre temas não contemporâneos (ALBERTI, 1989: 4).
Nessa linha, a história oral, conforme a citação, centra-se na memória humana e sua capacidade de rememorar o passado enquanto testemunha do vivido. Podemos entender a memória como a presença do passado, como uma construção psíquica e intelectual de fragmentos representativos desse mesmo passado, nunca em sua totalidade, mas parciais em decorrência dos estímulos para a sua seleção.
Não é somente a lembrança de um certo indivíduo, mas de um indivíduo inserido em um contexto familiar ou social, por exemplo, de tal forma que suas lembranças são permeadas por inferências coletivas, moralizantes ou não. Para Maurice Halbwachs (2004: 85), toda memória é coletiva, e como tal, ela constitui um elemento essencial da identidade, da percepção de si e dos outros.
Vale dizer que, de certa forma, filtramos nossas lembranças, ativando aquilo que queremos, que nos é significativo. Talvez não possamos impedir que certas lembranças aflorem, mas podemos controlar a forma como essas lembranças sairão da esfera do íntimo, do privado, e ganharão vida própria no público.
Memória e imaginação têm a mesma origem: lembrar e inventar guardam certa ligação. Le Goff nos lembra que os gregos antigos fizeram da Memória uma deusa (Mnemosine), mãe de nove musas inspiradoras das chamadas artes liberais, ente elas a história (Clio), a dança (Terpsícore), a astronomia (Urânia) e a eloqüência (Calíope). Com base nessa construção, vemos que a história é filha da memória e irmã das musas guardiãs da poesia e dos poetas, responsáveis, no mundo antigo, por eternizar a idade das origens, ressignificando-a.
Peter Burke descreve a memória como uma reconstrução do passado, uma vez que lembrá-lo e escrever sobre ele não são atividades ingênuas e inocentes como julgávamos até bem pouco tempo atrás.
Identificamo-nos com acontecimentos públicos relevantes para o nosso grupo e que por nós passam a ser incorporados e filtrados por nossas estruturas comportamentais; lembramos de uma propaganda, de uma música que, uma vez assimiladas em nossas lembranças, com elas nos identificamos, embora não tenhamos sido os construtores diretos das canções, mas por elas somos diretamente envolvidos.
Portanto, a memória é sempre uma construção feita no presente a partir de vivências ocorridas no passado. Memórias individuais e coletivas se confundem; não somos ilhas e, portanto, estamos sujeitos a influências, bem como a influenciar, os grupos a que pertencemos e com os quais nos identificamos.
Uma possibilidade de sistematização das lembranças, como indicadores e referenciais para múltiplos estudos, são os registros da oralidade. O que conhecemos como história oral é uma prática muito antiga, intimamente ligada aos contos populares, ao universo da comunicação humana.
A História surgiu contada, até constituir-se na escrita do depoimento realizado, das impressões registradas, da legislação disciplinada em sólidas escritas que a legitimam. Tudo isso numa nítida vontade de perpetuar, de maneira mais segura e perene, nosso passado.
Como procedimento metodológico, a história oral busca registrar – e, portanto, perpetuar – impressões, vivências, lembranças daqueles indivíduos que se dispõem a compartilhar sua memória com a coletividade e dessa forma permitir um conhecimento do vivido muito mais rico, dinâmico e colorido de situações que, de outra forma, não conheceríamos. A história oral pode ser entendida como
um método de pesquisa (histórica, antropológica, sociológica,…) que privilegia a realização de entrevistas com pessoas que participaram de, ou testemunharam acontecimentos, conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do objeto de estudo. Trata-se de estudar acontecimentos históricos, instituições, grupos sociais, categorias profissionais, movimentos, etc. (ALBERTI, 1989: 52).
A escrita e as narrativas orais não são fontes excludentes entre si, mas complementam-se mutuamente. As fontes orais não são meros sustentáculos das formas escritas tradicionais, pois são diferentes em
sua constituição interna e utilidade inerente.
Como cada ser histórico singulariza a sociedade na qual está inserido e a percebe de uma forma específica. Falar de uma história verdadeira seria muito ingênuo, mas podemos afirmar que se trata de uma percepção verdadeira do real, emitida pelo depoente, que assim compreende e se apropria do mundo ao seu redor.
Ao tornar pública sua percepção, está, de alguma forma, contribuindo para a elucidação parcial de alguma situação.
No entanto, há muito existe preconceito quanto ao uso da fonte oral. Em contrapartida, através de movimentos de renovação metodológica, realizados pelas escolas britânicas, norte-americanas e francesas, o campo de pesquisa se alargou para o historiador, fazendo com que esse tipo de fonte passasse a ser explorado com mais regularidade, vencendo de certa forma os preconceitos.
CRONOLOGIA DA HISTÓRIA ORAL
A história, segundo Philippe Joutard, a partir do século XVII constituiu-se cientificamente, em oposição à tradição oral. A reintrodução da história oral acontece no decorrer do século XX, mais especificamente nos Estados Unidos, quando grupos de historiadores constituíram suas próprias instituições, lançaram revistas e realizaram vários seminários.
Esse método se desenvolveu mais amplamente a partir do advento do gravador, ainda nos anos de 1950, nos Estados Unidos, e logo se difundiu pela Europa. Em outros países a história oral não possuía a mesma força que nos Estados Unidos dos anos de 1950, utilizada com o intuito de somente reunir materiais para os futuros historiadores.
Na Itália, já em fins dos anos 60, os antropólogos De Martino, Bosio e o sociólogo Ferraoti, com o objetivo de reconstruir a cultura popular, foram precursores da segunda geração de historiadores orais. Mais ambiciosos, não tomavam a fonte oral como um complemento, mas sim como “outra história”. Essa nova forma de pensar surgiu em meio aos conflitos e movimentos de feministas e sindicalistas de 1968.
Pregava-se o “não-conformismo sistemático”, isto é, uma história alternativa em relação a todas as construções historiográficas a partir do escrito. Entretanto, na Espanha a pesquisa com fonte oral foi empregada por poucas pessoas. Apenas, Mercedes Vilanova se destacou por trabalhar sozinha nessa área na Universidade de Barcelona.
Dois encontros importantes marcaram o início da terceira geração, um em 1975, em São Francisco, e o outro em 1976, em Bolonha. Joutard destacou, na França, dois grandes projetos coletivos, realizados também no ano de 1975: o primeiro, centrado no debate sobre os arquivos orais da Previdência Social, e o segundo, voltado para uma pesquisa sobre os etno-textos, reunindo historiadores, etnólogos e linguistas.
Na América Latina também há um desenvolvimento em áreas como a história política e antropologia, por volta da década de 1970. Após essa terceira geração se iniciar, criaram-se verdadeiros grupos de historiadores orais. Na Itália surgiu um projeto de história oral sobre o mundo operário, lançando, assim, um verdadeiro manifesto sobre história oral como meio de estudar as classes populares.
Nesse desenrolar dos estudos em história oral, as duas décadas seguintes foram marcadas pelas novas pesquisas e encontros voltados aos debates sobre as fontes orais. Os anos de 1980 foram propícios à história oral, quando se difundiram reuniões internacionais, criando uma verdadeira associação de Historiadores Orais.
Na mesma direção, a década de 1990 marcou a quarta geração. Em decorrência de fatos conjunturais, que deram margem para sua expansão, tais como a queda do muro de Berlim, os acontecimentos no Leste Europeu, os estudos stalinistas, as fontes orais foram mais amplamente exploradas. Muitos historiadores passaram a compreender a importância da história do tempo presente, para a qual as fontes orais são essenciais. Portanto, estruturou-se uma metodologia e uma organização teórica dentro do que passou a se chamar de história oral.
DIVISÃO DA HISTÓRIA ORAL
Na visão de Philippe Joutard, “… desde o início dividiram a história oral, uma próxima das ciências políticas, voltada para as elites e os notáveis, outra interessada nas „populações sem história‟, situada na fronteira da antropologia.
Além disso, coloca-se a questão das relações entre a história oral e as disciplinas afins que também se utilizam da pesquisa oral, como a sociologia e a lingüística” (JOUTARD, 1996:44). Com essa divisão, Joutard apresenta a história oral como uma prática que possui apenas o intuito de usar a entrevista como complemento de outros documentos e que pesquisa apenas os personagens principais; e a história oral antropológica, que se desenvolveu depois, com o objetivo voltado para os temas presentes nas experiências nacionalistas dos países.
Existe certo predomínio dessa última tendência “que conferiu à história oral” toda a sua extensão e abundância metodológica.
Dentro da perspectiva de Joutard, o uso da oralidade pode ser percebido de forma mais evidente na antropologia, devido ao estudo de sociedades sem registros, com tradições orais. Claro que aqui não se pode negar que a oralidade é fonte para os estudos históricos desde a antiguidade, com Heródoto e Tucídides.
Não tão remotamente, a oralidade era considerada fonte apenas entre pesquisas da antropologia. Mais tarde, outras áreas das Ciências Humanas e das Ciências Sociais passaram a recorrer às fontes orais e, assim, aos poucos constituiu-se o que hoje se convencionou chamar de história oral.
É importante lembrar que a história oral reconhece a confluência multidisciplinar e valoriza a contribuição da psicologia, em particular a psicanálise, basicamente pela necessidade de considerar a experiência de outras dimensões da realidade, como o inconsciente.
O historiador da oralidade também se utiliza de outras disciplinas que contribuem de forma importante para as pesquisas centradas nas fontes orais, como: a linguística, o folclore e a semiótica (métodos para análise dos conteúdos do relato oral).
A história oral é uma forma de intercâmbio entre a história e as demais ciências sociais. Muitas são as divergências na definição de história oral, e as opiniões de historiadores e pesquisadores se dividem. Em muitos aspectos, Philippe Joutard, Alessandro Portelli e Chantal de Tourtier-Bonazzi, autores de três capítulos do livro Usos e abusos da história oral (AMADO; FERREIRA, 2006), a defendem como uma metodologia que seria algo mais abrangente e complexo do que uma simples técnica de entrevista.
Já um outro grupo de pesquisadores reconhece na história oral uma área de estudos objetivos próprios. Para esses pesquisadores, a história oral apenas ordena os procedimentos de trabalho, tais como as entrevistas, e de que forma os entrevistadores e os entrevistados devem se comportar.
TENDÊNCIAS DA HISTÓRIA ORAL
Em relação a outras áreas do saber histórico, a história oral possui maior proximidade com o presente, uma vez que depende da memória “viva” e de relatos já efetuados anteriormente. Como já dito, essa prática tornou-se mais popular entre os historiadores há cerca de 25 anos.
Esse processo da história oral na América Latina não pode ser desvinculado das escolas britânica, norte-americana e francesa, pois, com sua renovação metodológica, ambicionavam uma história total.
Esse desenvolvimento se deveu também a alguns fatores sociais, como o interesse crescente pela história das mulheres, dos marginalizados e outros temas, os fenômenos migratórios, e também ao reencontro da história oral com a história geral, em torno dos estudos da memória.
Nessa perspectiva, esses fatores sociais acabaram por formar tendências dentro da história oral. Dessa forma, os historiadores voltaram-se à valorização das fontes memorialísticas. Segundo Jacques Le Goff, a memória e o passado são objetos da história e motores para seu desenvolvimento.
A memória, indispensável para a construção da história oral, integra-se à história geral. Joutard acrescenta que o progresso e difusão da história oral possuem intensidades distintas em cada país, onde pode haver “resistências” ou pode haver incentivos.
Para Joutard, a resistência dos historiadores à história oral apenas priva-os de novas perspectivas. Ele concluiu, concordando com Jean Pierre Wallot, que, apesar de ser um método novo, ela é um campo de amplo desenvolvimento nos estudos históricos.
Os arquivos orais existem em número e qualidade e muitos projetos têm ocorrido nesse campo. Nessa direção, os historiadores devem levar em conta que a história oral utiliza como fonte a memória de um testemunho para a compreensão de uma sociedade, a qual dá à história um campo de pesquisa considerável.
CRÍTICAS À UTILIZAÇÃO DA FONTE ORAL
A discussão inicia-se a partir de um artigo da revista Pós-História, no qual a historiadora Maria Teresa Nabão explana sobre seu projeto de pesquisa intitulado “Assentamento Fazenda Reunidas: memória, tradição e cultura nas terras de Promissão” (v. 8: 121-143). No decorrer desse trabalho a autora fez alguns questionamentos e críticas que o pesquisador enfrenta ao utilizar a fonte oral.
Segundo Alessandro Portelli (2006), as fontes orais revelam as intenções dos feitos, suas crenças, mentalidades, imaginário e pensamentos referentes às experiências vividas. A fonte oral pode não ser um dado preciso, mas possui dados que, às vezes, um documento escrito não possui.
Ela se impõe como primordial para compreensão e estudo do tempo presente, pois só através dela podemos conhecer os sonhos, anseios, crenças e lembranças do passado de pessoas anônimas, simples, sem nenhum status político ou econômico, mas que viveram os acontecimentos de sua época.
Muitas transformações ocorreram no campo da pesquisa histórica. As redefinições metodológicas e as análises da importância das experiências individuais têm sido reconsideradas.
A partir dos movimentos de renovação teórico-metodológica, houve o deslocamento das pesquisas de análise estrutural para as de estudos das redes sociais, dos sistemas políticos para o cotidiano, assim como da busca pelas expressões coletivas para o individual.
Essas renovações se devem muito em parte à democratização do conhecimento dentro das academias, o que possibilitou novas versões da história e permitiu a construção do conhecimento histórico a partir de relatos de pessoas que testemunharam e vivenciaram um determinado período.
Destarte, o pesquisador deve ter muito cuidado ao usar a fonte oral, assim como com todas as fontes. Deve primeiro submetê-la a uma minuciosa reflexão crítica e metodológica. Também precisa possuir um amplo conhecimento das críticas e dos aspectos polêmicos que envolvem o uso da fonte oral, de forma a explicitar suas posições e opções metodológicas na trajetória de pesquisa, armando-se de suporte teórico referente ao fenômeno estudado.
Há alguns aspectos críticos que envolvem a utilização da fonte oral. Críticas quanto à confiabilidade da fonte, pois muitos dizem que os depoimentos orais são fontes subjetivas, relativas à memória individual, às vezes falível ou fantasiosa. Paul Thompson argumenta que nenhuma fonte está livre da subjetividade, seja ela escrita, oral ou visual.
Todas podem ser insuficientes, ambíguas ou até mesmo passíveis de manipulação. Apesar da subjetividade a que a fonte oral está sujeita, em seu livro A voz do passado o autor defendeu o uso da metodologia da história oral, ao afirmar que “a evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história. […] transformando os „objetos‟ de estudo em „sujeitos‟” (THOMPSON, 1992: 137).
No processo apontado por Thompson de transformação dos objetos estudados historicamente em sujeitos, é preciso haver cuidado na entrevista e transcrição, de forma a constituir precisão no relato oral. Da mesma forma, deve ser feito no decorrer da pesquisa um paralelo e diálogo entre a documentação escrita já existente e a fonte oral. O importante é que o historiador perceba o que a testemunha quer expressar e quais seus motivos para o que relatou.
Outra crítica à fonte oral refere que ela só pode ser usada em pesquisas sobre temas contemporâneos. Essa crítica apenas se fundamenta enquanto não constituirmos e formarmos arquivos especializados em fontes orais, os quais guardarão as fitas, filmagens e transcrições das testemunhas.
Esses arquivos possibilitarão a historiadores em futuro distante a pesquisa e estudos de tempos passados e não necessariamente do presente. Assim, como as pesquisas em jornais somente são possíveis a partir de arquivos constituídos de forma cuidadosa e organizada, os estudos através da oralidade também dependem dessa organização. O historiador da oralidade é criador da própria fonte, pois a entrevista precisa ser extraída da testemunha e somente se torna fonte após a transcrição.
Por isso, Maria Teresa Nabão concorda com a posição de Jaques Le Goff, de que a memória é o objeto principal no trabalho com as fontes orais, pois o estudo é recuperado por intermédio da memória das testemunhas (NABÃO, v. 8: 121-143). Os estudos da memória são fundamentais para conduzir às reflexões, o que traz desdobramentos teóricos e metodológicos importantes. De acordo com Pierre Nora,
A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e discursos críticos. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica […] (NORA, 1993: 9).
A memória é a base constituidora da oralidade. Portanto, como discorreu Nora, ela, apesar de sempre atual, não apresenta precisão, pois está constantemente ajustada às crenças e imaginários dos indivíduos. Assim, a fonte oral pode ser confrontada com outros tipos de documentação e analisada não apenas como uma complementação do documento escrito nos estudos históricos, uma vez que ambos os documentos produzem informações sobre as transformações das sociedades humanas.
Conforme Garrido, “É necessário, pois, trabalhar com os dois registros sem que isto signifique que sejam complementares. Há coisas que nunca poderemos saber a partir apenas do documento escrito, e também há coisas que a pesquisa oral não permite sequer que sejam colocadas” (GARRIDO, 1993: 39-40). Conforme Jan Vansina, a fonte oral não substitui a fonte escrita, mas complementa e vice-versa (apud PRINS, 1992: 194-195). De acordo com esses dois autores, os dados orais fornecem visões diferentes sobre um determinado caso, e ao historiador cabe buscar a imparcialidade, amparando-se em diversas fontes de pesquisa.
SOBRE A ENTREVISTA
Os critérios utilizados para formular boas perguntas e obter boas respostas são muito importantes na elaboração de uma pesquisa com fontes orais. Após a escolha da forma de entrevista e do perfil do grupo de candidatos a serem estudados, realiza-se a avaliação das respostas, verificando a validade das mesmas, de uma das três maneiras seguintes, conforme aponta LODI (1977: 19): comparando-a com uma fonte externa; comparando-a com a de outro entrevistado; observando as dúvidas, incertezas e hesitações demonstradas pelo entrevistado.
No artigo de Chantal de Tourtier-Bonazzi, um dos capítulos do livro Usos e abusos da história oral, a autora também tratou da importância de se dedicar ao trabalho de recolhimento de um depoimento oral. Para ela, é essencial selecionar a testemunha, o lugar da entrevista e o roteiro.
Ao selecionar a testemunha, Tourtier-Bonazzi aconselha ao entrevistador organizar o grupo a ser estudado a partir de sua faixa etária, conforme o tema e o período histórico selecionados na problemática da pesquisa. Alguns cuidados devem ser levados em conta, pois esse trabalho exige muita paciência, principalmente do historiador, que deve limitar o tempo e evitar perguntas minuciosas, que podem acabar perturbando e confundindo a testemunha (TOURTIER-BONAZZI, 2006: 233-246).
O entrevistador deve, primeiramente, ouvir, atentar à psicologia da testemunha, conhecê-la e respeitá-la. Na sequência a autora afirma que o sucesso da entrevista depende da relação de amizade – conquistada através de encontros anteriores ao dia marcado para a entrevista – entre a testemunha e o pesquisador.
Assim como o resultado pode ser positivo, poderá surgir também uma entrevista entediante e sem importância para a pesquisa propriamente dita, e essa diferença, segundo Tourtier-Bonazzi, pode ser decisiva para a conclusão de muitos estudos.
O lugar escolhido também é importante para o sucesso da entrevista: deve ser tranquilo, onde o entrevistado sinta-se à vontade. Tourtier-Bonazzi deixa claro que deve haver uma preparação, feita por meio de leitura de livros sobre o assunto, consulta de arquivos, enfim, deve ser elaborado um roteiro, do qual o informante deve ter pleno conhecimento durante a entrevista, que pode ser dirigida, semi-dirigida, ou não-dirigida. Cada uma delas têm suas vantagens e desvantagens.
A entrevista dirigida prende a testemunha num questionário preestabelecido. A não-dirigida pode fazer com que a testemunha se afaste do tema. A mais indicada é a semi-dirigida, é um meio termo entre a fala única da testemunha e o interrogatório direto. Quanto à fase de transcrição, algumas regras devem ser observadas:
l A transcrição deve ser feita pelo próprio entrevistador, o quanto antes;
l as passagens pouco audíveis devem ser colocadas entre colchetes;
l as dúvidas, os silêncios, assinaladas por reticências;
l as pessoas citadas, designadas por iniciais (se necessário);
l as palavras em negrito serão as de forte entonação;
l anotações como risos devem ser grifadas;
l subtítulos para facilitar a leitura;
l os erros flagrantes deverão ser corrigidos: datas, nomes próprios etc.
Ao passar por esse tipo de transcrição, as entrevistas poderão servir de fonte para outros pesquisadores. A fita da gravação deve ser guardada, jamais destruída, pois é o documento original que se deve consultar.
Tourtier-Bonazzi encerra essa questão das transcrições incentivando as investigações e a validade dos textos para comprovação de sua qualidade. A testemunha, ao requerer o texto escrito de suas declarações, pode modificá-lo; ou algum outro acontecido pode vir a alterar a entrevista gravada. Portanto, os transcritores devem assinar um termo de responsabilidade pelos textos transcritos.
Quanto à publicação, Toutier-Bonazzi discorre sobre a posição de alguns entrevistadores. Uns elaboram seu relato para que este se torne um texto literário, tentando recuperar o ritmo da palavra e as impressões recebidas na entrevista. Exemplo: Revista Isto É – outubro de 1.999:
Acidente ferroviário na Grã-Bretanha: testemunho de uma vítima: “as luzes se apagaram e imediatamente a fumaça invadiu o vagão. Estava tudo tão escuro e o calor insuportável”. Afirmou Cris Goodhall “…que apesar das dores conseguiu escapar por uma janela quebrada”.
Esse último comentário é a visão do jornalista. Linguistas e sociólogos buscam publicar a transcrição o mais fielmente possível. O historiador deve apresentar as perguntas e respostas claramente. Alguns optam pela eliminação das repetições, organizam os temas da entrevista em ordem cronológica, fazendo o texto obter legibilidade, e não expõem sua opinião. Por exigência de um trabalho feito para edição, o historiador deve fazer com que a transcrição tenha a máxima fidelidade ao discurso e seja agradável para os leitores.
PRÁTICAS E ESTILOS DE PESQUISA EM HISTÓRIA ORAL
A prática da história oral apresenta pelo menos quatro grandes modalidades ou estilos de ação. Cada uma delas enfatiza e concebe uma forma particular de praticá-la.
O estilo do arquivo – documentalista
Para os que praticam essa modalidade, a história oral significa principalmente criar e organizar documentos transcritos, procedentes de entrevistas gravadas. Consiste em recolher testemunhos orais e assim constituir arquivos. Isso servirá de apoio para o historiador contemporâneo.
O estilo do difusor populista
Para esses entusiastas, a história oral surgiu como uma verdadeira “alternativa” para divulgar a história daqueles que não foram registrados objetivamente nas histórias oficiais, nacionais ou internacionais. Os difusores populistas constroem amplos acervos orais, mas não tentam avançar seus conhecimentos.
Estilo reducionista
Esses pesquisadores da história e da sociedade não valorizam totalmente a evidência oral em si mesma; usam-na apenas como um complemento. Para esse estilo, a informação oral é somente uma ilustração dramatizada dos argumentos teóricos e das categorias abstratas. Pelo seu caráter subjetivo, os depoimentos orais são considerados em segundo plano.
O estilo do analista completo
Esses historiadores orais consideram a fonte oral em si mesma e não só como mero apoio factual. Na prática eles interpretam, criticam e situam historicamente os depoimentos e as evidências orais. No estilo analista completo, a história oral é vista como um método particular, não somente isso, já que também é considerada um meio de estabelecer relações de maior qualidade e profundidade com as pessoas entrevistadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após este ensejo analítico sobre a história oral enquanto método e possibilidade teórica, é preciso destacar que, dentre as bibliografias que serviram de apoio no desenvolvimento deste artigo, a obra que mais contribuiu foi Usos e abusos da história oral, organizada por Janaína Amado e Marieta de Morais Ferreira.
Na introdução da obra, as autoras concluem que a história oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho tais como as entrevistas e as implicações de cada um deles para pesquisa, as várias possibilidades de transcrição de depoimentos, suas vantagens e desvantagens, as diferentes maneiras de o historiador relacionar-se com os entrevistados e as influências disso sobre o seu trabalho, funcionando como ponte entre a teoria e a prática. Mas, na área teórica, a história oral é capaz apenas de suscitar, jamais de solucionar questões, incitar questões, porém não pode oferecer as respostas.
Por tudo o que discorremos neste texto, podemos perceber a grande diversidade da história oral, tanto no que diz respeito àqueles que a praticam como às concepções que a embasam, o que evidentemente gera divergências e debates.
Ainda assim, a vitalidade desse campo é inquestionável, bem como é sua importância para as pesquisas em história do tempo presente. As pesquisas em história oral estimulam uma discussão interdisciplinar entre historiadores, sociólogos, antropólogos, líderes comunitários, psicólogos, ora organizando seminários, promovendo cursos e dessa forma, divulgando uma vasta bibliografia estrangeira e brasileira a respeito.
Portanto, concluímos que os historiadores da oralidade abrem possibilidades de ampliar nossos conhecimentos acerca das relações ente história e memória, assim como dos imaginários e mentalidades individuais. A história oral, enquanto método e prática do campo de conhecimento histórico, reconhece que as trajetórias dos indivíduos e dos grupos merecem ser ouvidas, também as especificidades de cada sociedade devem ser conhecidas e respeitadas.
REFERÊNCIAS
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