Messianismo: em Juazeiro, outra história
Messianismo: em Juazeiro, outra história. Em 6 de março de 1889, no povoado de Juazeiro, sul do Ceará, em reunião do Apostolado da Oração que havia se estendido por toda a madrugada, a hóstia sangrou na boca de uma jovem beata chamada Maria de Araújo durante uma comunhão ministrada pelo padre Cícero Romão Batista.
Essa narrativa faz parte de um esquema factual/temporal: sonho, milagre e guerra que embasou o que eu chamo de “história ofi cial” de Juazeiro.
O primeiro marco seria um misterioso sonho de 1872, quando supostamente Jesus Cristo teria pedido a Cícero para ficar no povoado e cuidar dos pobres do lugar, somente documentado em 1923.
O segundo marco, seria o sangramento da hóstia, em 1889, objeto de um processo episcopal (1891-1892) instaurado pelo bispo do Ceará na época, D. Joaquim José Vieira. Nesse processo, encontramos a narração das experiências místicas de Maria de Araújo, analisadas e condenadas pela Santa Sé em 1894.
O terceiro e último marco, a guerra, foi um movimento contra o governo do governador Franco Rabelo, aliado do marechal Hermes da Fonseca, que iniciou uma política de substituição das oligarquias estaduais.
Em 20 de dezembro de 1913, as tropas de Rabelo atacaram o povoado resistente, mas o precavido padre Cícero já havia ordenado a construção de grandes valados no entorno da cidade, que ficaram conhecidos como “círculo da Mãe de Deus” e serviram de proteção aos soldados da “guerra santa”, que ficou conhecida como “Sedição do Juazeiro”.
Após o sucesso na primeira batalha, o “exército” juazeirense, liderado pelo coronel Floro Bartolomeu, marchou em direção à capital, Fortaleza, sede do governo. A comitiva chegou à cidade em 19 de março de 1914, cinco dias após Rabelo ter sido deposto.
A estruturação da narrativa a partir desses três eventos que têm claramente um teor místico – mesmo o relato da guerra está impregnada de elementos religiosos – segue a tendência de ignorar a participação feminina nos eventos de 1889.
Uma questão importante é que, ao analisar cartas e jornais da época, é possível notar certa “consciência” de que a protagonista do suposto milagre era Maria de Araújo.
Somente após a condenação dos fenômenos pela Santa Sé, em 1894, uma série de fatores concorreu para a transferência do protagonismo dos acontecimentos para o padre Cícero, culminando com o esquecimento sobre a beata, e, consequentemente, com a construção de uma “história oficial”, hipótese que desenvolvi na minha tese de doutorado (Incêndios da alma: a beata Maria de Araújo e a experiência mística no Brasil do Oitocentos).
O livro do historiador Ralph Della Cava é uma das principais obras que ajudam a construir essa “história oficial”. Milagre em Joaseiro, publicado originalmente em 1976, foi produzido em momento no qual predominava uma abordagem materialista da história, na qual as questões econômicas e políticas ganhavam maior destaque, o que explica, por exemplo, o estudo aprofundado da política coronelista empreendido por Della Cava em contraponto ao desinteresse pelas questões culturais e de gênero.
Além disso, naquele momento, começaram a ser publicados os principais trabalhos que teorizavam sobre as práticas messiânicas e milenaristas, com destaque para as obras de Maria Isaura Pereira de Queiroz (1965), Rui Facó (livro póstumo de 1964) e Douglas Teixeira Monteiro (publicado na década de 1980), nos quais há uma tendência de se comparar a questão religiosa de Juazeiro (1889-1894) com os movimentos de Canudos (1893-1897) e Contestado (1912-1914).
Na acepção de Queiroz, por exemplo, a população, movida por um sentimento de insatisfação e vítima de uma opressão de uma ordem social vigente, se agruparia em torno de um líder, um guia espiritual que tem como função dirigir a comunidade com um objetivo principal: a busca pela salvação.
Edianne dos Santos Nobre é professora da UFRN e autora de O teatro de Deus: as beatas do Padre Cícero e o espaço sagrado de Juazeiro