Só a história julgará legado de Gorbachev

Só a história julgará legado de Gorbachev

MOSCOU — Como a história julgará Mikhail Sergueievich Gorbachev? De todos os grandes líderes do século 20 — Lênin, Hitler, Roosevelt, Churchill, Mao Tse-tung —, o último secretário geral do Partido Comunista Soviético e último presidente da União Soviética é o mais enigmático.

Ele foi o comunista que desmantelou o comunismo, o reformista surpreendido por suas próprias reformas, o imperador que permitiu o esboroamento do último império multinacional. Para alguns, foi o portador da liberdade. Para outros, o defensor da velha ordem repressora.

Na semana passada, Gorbachev ficou presidindo um reino no ar ignorado pelos dirigentes das repúblicas soviéticas no momento em que formavam uma nova Comunidade de Estados independentes; antipatizado pelo seu próprio povo e por muitos culpados pelo caos económico que varre o país; incitado a deixar o cargo por quase todos os seus antigos camaradas; e aparentemente impotente para alterar este último e triste capítulo da saga soviética.

As futuras gerações provavelmente associarão Gorbachev a algo que foi exatamente o oposto de sua intenção original: a destruição do comunismo e o fatal enfraquecimento da segunda superpotência mundial. Quando chegou ao poder em 1985, ele prometeu tornar mais forte a União Soviética, soprando nova vida no sistema socialista e revitalizando sua economia moribunda. Em dezembro de 1991, quando se prepara para deixar o cargo, a União Soviética está morta, o socialismo totalmente desacreditado, e a economia, mais desordenada do que nunca.

Mas o jovem camponês do sul da Rússia que fez carreira na burocracia comunista e chegou à posição de chefe do Kremlin também será lembrado como o homem que ajudou a pôr fim à Guerra Fria e devolveu a liberdade de palavra a uma grande nação. À parte alguns períodos históricos de exceção, a Rússia sempre foi uma terra de censores e polícias secretas diante dos quais só os mais ousados não se tornavam conformistas. Gorbachev possibilitou a todos expressarem seu pensamento, abrindo as comportas a uma torrente de queixas e opiniões furiosamente conflitantes que finalmente o afastaram.

Gorbachev vai ser associado ao oposto de sua intenção original: a destruição do comunismo e da URSS.

“Muitas emoções diferentes vem a tona quando penso cm Gorbachev”, diz Anatoly Medvedev, deputado russo centrista cuja carreira política não teria sido possível sem as reformas iniciadas pelo último czar comunista.  “Ele começou o processo de nos liberta do governo totalitário e criou as condições para o grande fim do comunismo. Mas, com suas hesitações e indecisões, também minou as bases de nosso Estado comum”.

“Gorbachev é um mistério. Não está claro se é um reformador ou um destruidor, um digno do Prémio Nobel da Paz ou o homem que dilacerou um país que cobre um sexto da superfície terrestre”, diz Yuri Chekochikin, um dos últimos jornalistas a entrevistar o presidente soviético. “Ele tentou reconciliar coisas inconciliáveis: comunismo e democracia. Deu liberdade aos escravos, e estes acabaram por amaldiçoá-lo.”

 A melhor explicação para o enigma Gorbachev talvez esteja em seu papel histórico único. Ele foi o agente escolhido pela história para subverter a ordem totalitária estabelecida por Lênin e Stalin. A fim de destruir esse monstro, Gorbachev teve de proceder furtivamente. Mestre nas intrigas do Kremlin, ele pintou e bordou entre facções rivais, escondendo suas verdadeiras intenções numa bruma de retórica comunista.

 Às vezes, aparentemente, era incapaz de admitir até para si próprio as revolucionarias consequências de seus atos.  “Eu conhecia o sistema por dentro. Afinal, passara 10 anos como secretário regional do partido”, disse Gorbachev a Chekochikin numa sua reveladora entrevista publicada na Literaturna ya Gauta. “Eu conhecia a força (do partido e da policia secreta, KGB). E o que posso dizer e hoje eu não era capaz de dizer antes. Tive de driblar aquela gente.”

 “Gorbachev só tinha mesmo a alternativa do jogo duplo”, diz Alexander Yakovlev, destacado constitucionalista. “Se ele tivesse revelado plenamente suas intenções, os homens da linha a dura teriam agido muito mais decisivamente. Não teriam agido como agiram durante o golpe de agosto, quando pensaram que poderiam convencê-lo a passar-se para o seu lado. Sua duplicidade nos poupou de um terrível banho de sangue.”

O talento de Gorbachev para o compromisso e as evasivas foi ao mesmo tempo sua força sua fraqueza. Foram provavelmente suas manobras táticas que em várias ocasiões salvaram o país de um retorno a um regime comunista de linha-dura. Mas ao recusar-se a um decisivo rompimento com o passado ele perdeu sua oportunidade de promover reformas econômicas efetivas.

Ganhou tempo politicamente, mas malbaratou-o economicamente. Enquanto o presidente fazia seu jogo com o aparato do partido, a economia e o Estado iam-se desintegrando rapidamente. Este jogo custou-lhe afinal não só o cargo, como a superpotência que jurara reconstruir.

E difícil dizer se as reiteradas profissões de de Gorbachev no socialismo espelhavam uma convicção ideológica, oportunismo político ou pura teimosia. Num encontro com intelectuais, há um ano, ele disse que trair o socialismo seria como trair seu pai e seu avô. “Não me envergonho de dizer que sou comunista e fiel ao ideal socialista”, explicou. “Minha escolha foi feita há muito tempo, e é definitiva.”

Ao contrário do presidente russo, Boris Yeltsin, outro antigo secretário regional do partido, Gorbachev nunca conseguiu romper com o meio de que provinha. Sua autoridade política decorria da liderança que exercia no partido governamental, e não de um autêntico mandato popular.

 Até o momento do golpe de agosto ele foi um homem do partido, à vontade no meio de suas intrigas mesquinhas e sua linguagem burocrática esclerosada.  Mesmo depois que o grosso da liderança partidária o havia traído, durante o golpe, ele continuou retoricamente comprometido com “a causa do socialismo”.

No fim, o erro fatal de Gorbachev terá sido sua lealdade a um partido desacreditado aos olhos da maioria dos soviéticos. E ele se mostrou incapaz de criar vínculos com a população e conquistar a legitimidade popular de que precisava para romper decisivamente com o passado.

Sua justificativa para continuar como líder do partido era clara: temia que a força política mais poderosa e organizada do país fugisse ao seu controle. Mas ao tentar manter sob controle a burocracia do partido, ele também se tornou seu refém. “Gorbachev aferrou-se por demasiado tempo à ilusão de que o Partido Comunista era capaz de se reformar”, diz Len Karpinsky, comentarista político e antigo companheiro do dirigente soviético na Juventude Comunista.

“Ele era mais influenciado pelas pessoas que o cercavam do que pelas forças democráticas que liberara. E ficou ao lado delas ate o último momento”.

Como tantos czares reformistas, Gorbachev enfrentou o problema de romper o poderio dos boiardos, a elite conservadora. Com sua política de glasnost, ou abertura, tentou dar a uma população até então conformada uma voz política para contrabalançar a influência dos modernos boiardos, a nomenklatura (ou elite) do Partido Comunista. Mas continuava fazendo política de corte. Em contraste com Yeltsin, Gorbachev nunca se dispôs a dar completamente as costas aos boiardos, contando apenas com o povo. Havia sempre o medo de que ele fosse derrubado do cargo.

Um momento decisivo deu-se em 1989, quando Gorbachev rejeitou uma proposta de eleição presidencial direta, aceitando ser nomeado para um dos mandatos especialmente reservados para o PC no parlamento soviético.

Àquela altura, ele provavelmente ainda conseguiria conquistar um Mandato popular; a economia ainda não começara a entrar em colapso, e seu prestígio como pai da perestroika e da glasnost ainda era alto. Mas ele preferiu mostrar-se solidário com seus camaradas do Birô Político do Partido Comunista.

Depois que a Rússia e as outras repúblicas promoveram eleições democráticas em 1990, o presidente soviético começou a ser identificado com a resistência às reformas. A luta pela democracia na União Soviética tornou-se uma luta das repúblicas contra o centro, personificado em Gorbachev.

O triunfo da democracia significaria inevitavelmente o colapso do Estado soviético centralizado e a emergência de 15 repúblicas independentes.

Quando Gorbachev foi eleito secretário geral do Partido Comunista Soviético, em 11 de março de 1985, sucedendo a Konstantin Chernenko, a superpotência comunista estava mergulhada na estagnação e numa crise de identidade.

O crescimento econômico descera a praticamente zero. Tecnologicamente, a União Soviética estava ficando para trás de seus rivais ocidentais, até mesmo no terreno militar, que engolia a maior parte de seus recursos. Era generalizada a convicção de que alguma coisa drástica teria de ser refeita para que o colosso soviético voltasse a se movimentar.

Como o mais jovem e melhor preparado dos dirigentes soviéticos desde Lênin, Gorbachev parecia o homem certo para a função. Era enérgico e flexível.

Da noite para o dia, a política do Kremlin deixou sua mesmice de sempre, transformando-se num debate apaixonante e cada vez mais aberta.  Os velhos dogmas iam sendo descartados um a um, à medida que Gorbachev e seus companheiros procuravam soluções inovadoras para os urgentes problemas do país.

O fim foi acelerado por uma política financeira perdulária e porque não se tomavam decisões.

Mas quanto mais Gorbachev tentava remendar o sistema, mais claro ficava que os remendos não seriam suficientes. “Gorbachev não sabia aonde levaria sua experiência ao iniciá-la”.

Estou convencido de que gostaria de ter parado antes. Mas quando deu aquele primeiro passo fatal, já era tarde demais”, escreveu o comentarista Leonid Guzman num obituário político do líder soviético, publicado no semanário progressista Ogonyok. “Por mais que ele possa lamentar hoje, foi à escolha que fez, e embora já não seja considerado in manifestar gratidão ao presidente, considero meu dever fazê-lo.”

O comunismo reformado revelou-se uma contradição em termos. O sistema comunista concebido por Lênin e Stalin era uma estrutura política e econômica estritamente integrada, baseada na propriedade estatal dos meios de produção, numa ideologia monolítica e numa vasta máquina repressiva. Assim que alguém começou a mexer numa parte do sistema, as outras também se viram ameaçadas. Ao tentar reformar o comunismo, Gorbachev acabou apressando sua derrocada final.

O último líder soviético também apressou o fim do comunismo com sua política financeira perdulária e sua incapacidade de tomar decisões econômicas difíceis como a liberação dos preços e o fechamento de fábricas deficitárias.

O buraco no orçamento estatal subiu de pouco mais de 3% quando ele chegou ao poder para cerca de 50%. A desastrosa campanha contra o alcoolismo de 1986-87 contribuiu para o déficit, secando a maior fonte de rendimentos do governo. Para compensar o déficit, o governo não parava de emitir rublos que valiam cada vez menos.

De certa maneira, o erro de Gorbachev era tipicamente bolchevique. Ignorando o truísmo marxista segundo o qual a política no fim das contas se resume à economia, os bolcheviques comportaram-se como se pudessem mudar o mundo simplesmente com sua vontade política. Preocupado com a luta política, Gorbachev cometeu o erro fatal de presumir que a economia caminharia sozinha.

O resultado foi um dos mais desastrosos colapsos econômicos jamais experimentados por um grande país industrializado. Só este ano, acredita-se que a produção cairá cerca de 14%.  A União Soviética foi capaz de explorar sua fabulosa riqueza econômica ao longo de sete décadas.

As abundantes reservas de petróleo, ouro e outros recursos naturais da Sibéria permitiram financiar o maior exército do mundo e um império no qual o sol nunca se punha. Os USS 200 bilhões de rendimentos obtidos com petróleo de 1970 a 1985 ajudaram a financiar invasão do Afeganistão, toda uma série de regimes simpáticos, da Nicarágua a Angola, e uma infinidade de projetos grandiosos em casa.

Quando Gorbachev chegou ao poder, já era evidente que os rendimentos do petróleo estavam se acabando. A tradicional concepção soviética de desenvolvimento econômico — que redundava em terrível depredação do meio ambiente — teria de ser substituída por alguma forma de desenvolvimento intensivo.

Era isto, afinal, a perestroika. Mas embora conseguisse reduzir o fardo do império, saindo do Afeganistão e da Europa Oriental, a nova liderança continuou a pilhar o tesouro nacional. Durante os anos Gorbachev, a dívida externa da União Soviética praticamente quadruplicou, chegando a USS 70 bilhões. As reservas de ouro caíram em cerca de 90%, reduzindo-se a 240 toneladas.

Carente de investimentos, a produção petrolífera começou a declinar acentuadamente em 1988, privando o Kremlin de sua principal fonte de divisas. No início deste mês, metade dos aeroportos do país teve de fechar por falta de combustível. O ministro da Economia da Rússia anunciou que o banco soviético que detinha o monopólio do comércio exterior estava falido.

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É ao mesmo tempo simbólico e significativo que Gorbachev seja forçado a deixar o cargo exatamente neste momento. Enquanto os bancos ocidentais estavam dispostos a continuar, emprestando à União Soviética, enquanto as, reservas de ouro não estavam completamente esgotadas, as reformas econômicas mais profundas podiam ser adiadas. Quando o país inteiro foi à falência, o mestre político ficou sem margem de manobra.

Como então será Mikhail Gorbachev julgado pela história? Como um estadista visionário ou um político sem horizontes? Havia algo de historicamente inevitável na queda do comunismo e no colapso do império soviético: nenhum dos dois poderia durar para sempre.

Mas o fim não teria necessariamente de ser como foi, nem no momento em que ocorreu. Gorbachev provavelmente estava certo ao argumentar que o sistema totalitário poderia ter permanecido de pé por mais alguns anos. Foi ele que desencadeou os acontecimentos e contribuiu para que tomassem o rumo que tomaram.

“Se Chernenko tivesse sido sucedido por alguém da linha dura, em 1985, o resultado teria sido trágico. Poderia ter estourado uma guerra entre as duas superpotências”, diz o escritor cineasta Ales Adamovich. . “Gorbachev pôs fim à divisão do mundo em dois sistemas — o democrático e o totalitário — que estavam a ponto de se eliminarem reciprocamente e ao resto da humanidade. Não tenho a menor dúvida de que ele mereceu o Prémio Nobel da Paz.”

Ao contrário de outros revolucionários, o que Gorbachev tentou fazer não foi mudar o curso da história mas nadar em sua corrente. Esta foi talvez sua maior virtude.

Ele percebeu que o Leste Europeu um dia se libertaria da dominação soviética, que as duas Alemanhas voltariam a se juntar, e que o Estado unipartidário estava condenado. Qualquer tentativa de reverter esses processos históricos naturais poderia ter produzido enorme sofrimento humano.

“Eu ergueria um monumento de ouro a Gorbachev, por não ter resistido ao curso da história”, disse Gleb Yakumin, sacerdote dissidente que estava entre as centenas de prisioneiros políticos soltos pelo líder soviético. “Ao longo da história mundial, os grandes impérios nunca se desintegraram pacifica- mente, por si próprios. Foi grande parte graças a Gorbachev que se pôde desmantelar o sistema leninista-stalinista sem muito derramamento de sangue”.

Gorbachev apresenta o desmantelamento pacífico do Estado totalitário como seu maior legado histórico, e cita o fracasso do golpe de agosto como prova de que a democracia finalmente está criando raízes no inóspito solo russo. “Meu objetivo era habilitar nosso país, pela primeira vez em séculos de história, a atravessar um momento crucial sem verter sangue”, disse ele à Literaturnava Gazeia.

Se Gorbachev atingiu seu principal objetivo é matéria ainda em julgamento. Levando-se em conta a dimensão e velocidade dos acontecimentos, ate agora a Segunda Revolução Russa foi relativamente incruenta.

A libertação do Leste Europeu e o colapso do império aconteceram da maneira mais suave e pacífica que seria razoável esperar. Mas as transformações na antiga União Soviética ainda não acabaram, e do caos econômico atual qualquer resultado pode sair — até mesmo a violenta restauração de algum tipo de regime autoritário ou fascista.

“Fiz o melhor que pude”, disse o último presidente da União Soviética em entrevista recente. “Se tudo acabar bem, os ataques contra mim perderão o sentido. Mas se as coisas não funcionarem, nem mesmo o testemunho favorável dos anjos poderia meu alvar”.

“O povo é impiedoso: a gente faz o bem e ninguém agradece” (Czar Boris Gudonov, num poema de Alexander Puckin)

Michael Dobbs – The Washington Post. (Créditos) 1991.

Digitação: Vithor Calado.

Jornal impresso do arquivo Histórico do Prof. Gilvandro.

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